Identidade, cultura e direito
APRESENTAÇÃO
Dr. Marcelo Guimarães Lima
A identidade é uma questão do outro. Ali onde falta a alteridade, falta também o reconhecimento de si como próprio, isto é, como “alteridade própria”, ou seja, como outro de algum outro. Assim como a consciência se estrutura na relação a um objeto, a consciência de si se dá na relação com outra consciência de si, como analisou Hegel1 na Fenomenologia do Espírito.
No processo de conhecimento, observou Hegel, sujeito e objeto, que se perfilam como opostos de início, se transformam ao fim, se renovam mutuamente, recriam relações num movimento contínuo de reenvios e recomeços, num movimento em espiral de turnos e retornos nos quais o ponto de partida e os resultados se multiplicam, se renovam e se transformam. O “eu” filosófico se diferencia por meio do “não-eu”, na fórmula de Fichte, formando um par dialético no qual o positivo e o negativo se espelham, afirmação e negação se fundamentam como relação, reciprocidade. Como afirmou Hegel, seguindo Spinoza: toda determinação é uma negação.
Foi por meio de uma concepção dialética abarcando o pensamento e o real, o entendimento do conflito, o polemos heraclitiano, como princípio da realidade, a compreensão da unidade dos contrários no conflito, da contradição como motor do pensamento e da realidade, que Hegel desenvolveu sua teoria do reconhecimento, a dialética do Senhor e do Escravo, nas relações humanas, na história e na sociedade.
Na dialética do Senhor e do Escravo, Hegel apontava o conflito estrutural na dinâmica das relações sociais da modernidade expresso como conflito da consciência de si e do outro. A consciência de si existe em relação, como relação com outra consciência, como processo de mediação essencial do eu pelo outro, como dependência mútua dos sujeitos opostos. O conhecimento e a afirmação de si passa pelo espelhamento entre o eu e o não-eu, de modo essencial pelo reconhecimento pelo outro. A condição humana, individual e coletiva, nas suas várias dimensões, se estrutura sempre pela comunidade do reconhecimento, pela reciprocidade fundamental inscrita de diversos modos nos códigos e reflexões éticas e morais, e mesmo nas religiões enquanto disciplinas de conduta entre indivíduos e comunidades, na história humana. Mas, numa comunidade fraturada, estruturada no domínio, na relação de subordinação entre os homens, o reconhecimento se dá como conflito do reconhecimento.
Na globalização moderna, sequência e modificação da expansão europeia iniciada no Renascimento, a desigualdade estrutural interna entre as classes sociais se “exterioriza” nas relações de integração subordinada entre centro e periferia, entre povos, culturas, civilizações diversas, enquanto processo dialético de unificação no e pelo conflito. Podemos afirmar que a crise geral do processo capitalista global de integração subordinada entre centro e periferias é o pano de fundo dos novos movimentos e novas concepções ideológicas que, no século XXI, mapeiam a nossa situação presente na questão das identidades, na política ou políticas do reconhecimento. A esfinge da história contemporânea parece nos perguntar, sob pena de sermos devorados por novos e antigos enigmas, “quem somos” afinal? Resposta que engloba, igualmente, quem podemos e queremos ser.
Um, entre vários, dos méritos da presente obra de Cleide Aparecida Vitorino é abordar a questão das identidades, das chamadas “minorias”, das identidades culturais e ancestrais na sociedade brasileira articulando os pontos de vistas técnico e histórico-cultural do direito. Ancestralidade quer dizer aqui a questão da pertença a tradições de resistência, tradições locais, embasadas na geografia e na história, tradições intercontinentais, dos fluxos históricos de populações subjugadas e transplantadas. A autora une o exame da história do reconhecimento legal das identidades dos grupos humanos excluídos ou subjugados no Brasil à investigação do contexto histórico, cultural e social que a legislação tanto revela como “encobre”, por assim dizer, quando a letra jurídica e o “espírito” do corpo social divergem e a proteção legal, o reconhecimento do direito das comunidades historicamente subordinadas, a promoção da plena cidadania encontra obstáculos para a sua completa aplicação na realidade. Para a autora, a questão do reconhecimento legal contribui para a valorização da pluralidade histórica, cultural e racial na sociedade brasileira hoje.
Resistência é, aqui, o conceito-chave para entendermos o significado da temática da ancestralidade. Trata-se de seres humanos que recusaram e recusam ativamente, no tempo e no espaço, a sua desumanização, que persistem como comunidades de apoio mútuo e mútuo reconhecimento, que embasam a consciência do que são nas suas práticas e valores de apoio mútuo, de promoção comunitária, de resistência cultural, isto é, de preservação e criação (que se implicam mutuamente, a preservação cultural não é mera reprodução do sempre igual, mas é sempre recriação, “rejuvenescimento”, no tempo e pelo tempo) de práticas, ideias, ideais, imagens, de que se valem os grupos humanos para adaptação aos seus contextos vitais e para refazer estes contextos enquanto realidade humanizada, isto é, realidade de convivência, de reconhecimento da alteridade dialeticamente inscrita na identidade própria, consciência do outro, que não é outra que a consciência ecológica que nasce em nosso tempo do cuidado de si como cuidado do outro: uma ecologia humana da natureza como ecologia social, ecologia da convivência dos grupos humanos diferenciados e conscientemente unidos nos desafios vitais do nosso tempo.
É próprio do trabalho científico o exame rigoroso das nossas representações cotidianas e, quando necessário, refutar a nossa “filosofia espontânea” aquela que nasce das representações comuns, das “verdades evidentes” de todos os dias as quais, ao fim, constituem obstáculos ao livre e metódico exame de crenças estabelecidas e representações incompletas, errôneas, atreladas aos interesses e expectativas dos indivíduos confinados aos horizontes restritos do contexto imediato. O trabalho científico requer adesão aos valores da inteligência humana em liberdade. Nele se refletem a vivência desses valores de liberdade e honradez que permite a união, no caso das chamadas Ciências Humanas (mas não apenas nessas) da experiência pessoal e do rigor científico. É o caso da nossa autora, brasileira de descendência e pertença afro-indígena, cuja experiência pessoal de busca de sua ancestralidade norteou a escolha do tema e embasou seu desenvolvimento.
As questões da identidade surgem em nosso tempo, em aspectos importantes, como reflexo da globalização/mundialização da nossa época histórica, a comunicação, a imigração, o deslocamento de populações ameaçadas por catástrofes humanas (guerras, epidemias etc.) e naturais, encurtam as distancias entre grupos humanos e aceleram os tempos de contatos.
Como em todo processo de autorrepresentação nas sociedades, condicionado pelos ventos das urgências cotidianas, essas questões arriscam sofrer um processo de reificação no qual a indagação das identidades se degrada em identitarismo como ideologia, isto é, como resposta em curto-circuito a questões superficialmente consideradas, simplificação abusiva, solução imaginária dos problemas reais e complexos do nosso tempo.
Não é mérito menor do livro de Cleide Aparecida Vitorino ter evitado, com consciência e rigor, as armadilhas ideológicas da atualidade, os riscos do identitarismo de servir à cooptação pelo status quo das energias da contestação e da resistência em favor da perpetuação das desigualdades estruturantes da sociedade capitalista em sua fase neoliberal. É claro para a autora que a luta pelo reconhecimento das identidades e das pertenças não quer dizer simples adaptação a uma dada realidade, mas é fundamentalmente luta pela transformação das condições histórico-estruturais que reproduzem as desigualdades e a exploração das coletividades humanas diferenciadas e subordinadas na história e no presente.
Referência:
1 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. 6. ed. Petrópolis: Vozes,
1992.
Comments
Post a Comment