RECORDAÇÕES DO FUTURO: CRÔNICAS DA DEMOCRACIA IMPEDIDA
Recordações do Futuro,
Crônicas da Democracia Impedida
Texto e ilustrações do autor
Hipergrafia
São Paulo, 2025
ISBN 978-65-01-38923-3
INTRODUÇÃO
A democracia impedida é algo recorrente na nossa história moderna. As relações de poder na vida da nação brasileira expressaram e expressam uma gritante defasagem entre a ordenação política de superfície, os emblemas, os ritos e as imagens da representação dita “popular” – formalmente democrática – e as estruturas de fundo do poder vertical e concentracionário. Sem um ponto de apoio consolidado que lhe sirva de sustentação, a democracia brasileira parece viver e morrer de uma autorrepresentação puramente exterior, sem memória efetiva dos constantes desafios e obstáculos à soberania popular e, deste modo, sem passado “próprio” e, portanto, sem futuro.
No tema da memória coletiva não cabe, evidentemente, qualquer tipo de visão nostálgica. Não faz sentido idealizar estruturas políticas do passado. Ainda assim, o golpe de 2016 deixou claro que mesmo a especiosa democracia brasileira, frágil, limitada, tantas vezes aviltada, cerceada ao longo da nossa história moderna, se revelou, em várias ocasiões, como empecilho aos desígnios de poder e à “vontade soberana” da classe dominante, um obstáculo a ser contornado ou eliminado.
A recordação das lutas do tempo, as lutas do passado recente que é o nosso, é memória viva e atuante que atualiza as energias do combate pluricentenário no país chamado Brasil pela soberania popular como resposta contra a dominação de poucos sobre o destino da maioria e o cortejo de miséria material e moral que esta dominação produz e reproduz na história da nação.
Este é também o combate dos povos nestes tempos onde o domínio da minoria dos acaparadores da riqueza global se torna mais e mais desastroso, custoso e insuportável, impondo guerras, miséria e sofrimento e ameaçando não apenas a sobrevivência de determinados grupos humanos (vide o genocídio do Estado de Israel contra o povo palestino, genocídio apoiado e sustentado pelos EUA e a União Europeia) mas, também, com a crise ecológica, somada aos arsenais nucleares ainda existentes, ameaçando a vida no planeta.
O texto inicial é um breve ensaio que escrevi a convite de Willis Santiago Guerra Filho para uma das primeiras publicações de tipo analítico que examinava o contexto das chamadas “jornadas de junho” de 2013, que configurariam, malgrado intenções, avaliações e iniciativas subjetivas, uma espécie de antessala do golpe contra Dilma Rousseff, contra o PT e contra as escolhas democráticas do povo brasileiro em 2016. No caso, a “astúcia da história”, que se realiza por meio e apesar das intenções conscientes dos atores humanos, se mostrou com as roupagens da velha malandragem da direita golpista brasileira, favorecida pelo contexto neoliberal local e global, verdadeiro enigma da esfinge para as diversas forças progressistas brasileiras na ocasião. A justificativa para publicar novamente este ensaio é de servir como uma espécie de introdução geral, algo como uma premissa esboçada para as considerações seguintes sobre a conjuntura, as ações e os atores da narrativa intitulada Brasil, que mistura necessariamente, por natureza, documentário e “ficção”, o verossímil com o “inverossímil, porém real”, próprio da nossa constitutiva suprarrealidade, como apontava, em outros tempos e em outro contexto, Oswald de Andrade, mitógrafo e mitólogo, pensador da brasilidade crítica e imaginativa.
Os demais textos aqui reunidos foram publicados no blog Democracia e Arte, que iniciei em 2016 como resposta individual ao golpe parlamentar / jurídico/ midiático que, de modo abjeto, covarde e ilegal, depôs a presidenta Dilma Rousseff e deu início a mais um período de regressão civilizatória no país. A partir de 2020, meus escritos foram acolhidos por Ricardo Musse nas páginas de A Terra é Redonda,1 a quem agradeço a oportunidade, junto com os antiterraplanistas Artur Scavone e Ricardo Kobayaski.
Afora correções necessárias, aprimoramentos de estilo e algumas modificações visando maior clareza de exposição, os textos permanecem, no essencial, tais e quais. São expressões de momento, uma espécie de diário reflexivo, com avaliações no calor da hora, algumas que o tempo e a realidade corroboraram, outras que não se verificaram. No todo, uma tomada de posição contra o arbítrio, contra o despotismo naturalizado, contra a barbárie.
A ditadura militar iniciada em 1964 havia atrasado o “relógio da história” do país em pelo menos 50 anos. Em 2016, a farsa golpista com a cassação do voto popular que elegeu a presidenta Dilma, rememorava e reatualizava, a seu modo, o nefando período da ditadura militar com os mesmos personagens grotescos, a mesma ideologia antipovo e antinação, as mesmas justificativas forjadas, um desfile de mentiras e de insultos à inteligência dos cidadãos brasileiros.
Tendo vivido a minha adolescência e juventude no período da ditadura empresarial-militar, minha primeira reação foi de profunda indignação contra a covardia dos que se julgam donos do país, a superlativamente medíocre e desavergonhada classe dominante brasileira e seus serviçais no congresso, nas forças armadas e nos meios de comunicação. Como ousam, pensei, tentar refundar a ditadura em pleno século XXI? Como ousam mais uma vez humilhar a nação e sufocar as aspirações populares por dignidade, liberdade e justiça? Escrever estes textos foi minha resposta, tentativa de compreensão e ato de combate contra a mistificação e a violência dos golpistas. Uma resposta pessoal e limitada sem dúvida, mas que, acredito, se somou de algum modo ao coletivo dos brasileiros que resistiram e resistem e proclamam, hoje como ontem, que a opressão, a espoliação, a submissão, a humilhação, a manipulação, não constituem destino inelutável da maioria neste país.
A contestação ao regime militar de cunho neofascista na segunda metade do século XX acarretava prisão, tortura e morte. Em 2016 a cúpula militar, nostálgica da ditadura e da Guerra Fria, permanecia na retaguarda apoiando e buscando dirigir o esforço golpista dos parlamentares reacionários. No parlamento, a santa aliança entre conservadores, a direita dita liberal e a extrema-direita estabelecida junto ao chamado baixo clero, reunindo oportunistas de vários matizes, profissionais da política enquanto balcão de negócios, permitiu a rápida ofensiva contra a frágil ordem política do país. O golpe teve como norte reverter o relógio da história recente, extinguir direitos e, finalmente, estabelecer a ditadura neoliberal do capital financeiro e seus aliados permanentes e ocasionais em bases mais firmes e sem contestação possível.
O estrago foi grande, mas desde 2016 a juventude resistiu, estudantes resistiram, intelectuais, artistas, as minorias, as organizações populares, organizações profissionais, a classe trabalhadora, resistiram, denunciaram, combateram os desgovernos Temer e Bolsonaro. A resistência fez aflorar as contradições e os conflitos no interior do movimento golpista. A derrota de Bolsonaro na eleição de 2022 e a volta de Lula à cena política, marcaram o estancamento a meio caminho da aventura neofascista. Hoje, as forças populares ainda confrontam o país que emergiu do golpe de 2016: uma nação sob o jugo da comunicação monopolizada, herança perversa cuja base foi assentada na ditadura militar, com o papelda Rede Globo de porta-voz oficiosa do regime ditatorial. Um país condicionado pela conjuntura neoliberal global e o poder discricionário do capital financeiro transnacional enquadrando os estados como poder supranacional de fato. Um contexto de marcada regressão ideológica, instrumentalização da religião como ideologia, como justificativa da opressão moral e material, como ópio das massas, difusão do pensamento único também nas classes populares, promoção de uma sociabilidade adaptada à lei da selva da desordem competitiva, desagregação de laços comuns de solidariedade, individualismo exacerbado, empobrecimento da linguagem e esterilização do pensamento que atinge tanto a maioria leiga quanto os profissionais das ideias; tanto os discursos dos especialistas quanto as representações do cotidiano.
Da perspectiva do início de 2025, determinados fatos, feitos e personagens aqui mencionados podem parecer, para alguns, referências a outros tempos, outros contextos, quase um outro país. Por outro lado, o cerco ao governo Lula se esboça no período final de 2024 e início de 2025 como a aposta da oligarquia brasileira, associada à máfia financeira, ao monopólio das comunicações, aos partidos onde se abrigam a extrema-direita e os chamados “conservadores”, em relações carnais sempre que seus interesses exigem.
A consciência do tempo no cotidiano é sempre restrita, mas a vida de todos os dias se inscreve em mais de uma dimensão temporal. A dimensão vivida da história presente é a que nos propomos apresentar, com as limitações que são as nossas, por meio destas crônicas, imagens, retratos que de um lado formalizam, por assim dizer, o efêmero, relacionam a experiência do tempo que se vai com o tempo que se acumula, para tentar compreender a atualidade, apontar caminhos possíveis e contribuir, tanto quanto possível, para desvendar o futuro ou futuros possíveis.
Claro está que a intenção do autor não é critério final de avaliação de um projeto. A avaliação cabe ao leitor interessado que poderá separar os eventuais sucessos das esperanças ou intenções frustradas que ocorrem em todo e qualquer processo de produção de ideias e tentativas de captar a significação presente do que fazemos e vivemos. Acredito que estes textos reunidos em livro podem ser justificados, com todas as limitações da escrita da atualidade, produzida “no calor da hora”, como um convite para atualização da memória através da palavra escrita considerada, exercida, produzida como diálogo, caminho de mão dupla unindo autor e leitores num campo comum de indagações e busca de respostas.
A atualização da memória, a percepção crítica da conjuntura histórica, são tarefas urgentes hoje como ontem, que se mostram ainda mais imprescindíveis e atuais quando assistimos, no momento atual, às interferências do “pessoal da Faria Lima”, o núcleo duro da oligarquia neoliberal (que poderíamos caracterizar como parte essencial do Not So Deep State brasileiro, os donos de fato do poder), na conjuntura econômica do país tomando para si e para seus auxiliares várias das tarefas do malogrado golpe militar de Bolsonaro e reforçando a tradição do que chamamos de “golpismo estrutural” na vida política do país.
Hipergrafia, São Paulo 2025
ISBN 978-65-01-38923-3
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