MARTíN CHAMBI, FOTÓGRAFO NATIVO
Marcelo Guimarães Lima
Martín Chambi
Juan de la Cruz
Sihuana, Cuzco, 1925
Aos 14 anos, Martin Chambi (1891-1973) trabalhou nas minas de ouro que os britânicos exploravam em seu Peru natal. Aprendeu os rudimentos da fotografia com os mesmos patrões estrangeiros. Tornou-se fotógrafo profissional trabalhando por encomendas, especialmente retratos, bem como por conta própria, fotografando a terra e seu povo. As obras encomendadas serviram para financiar sua paixão por documentar seu tempo, sua terra e sua cultura.
Nas obras de Chambi, a fotografia é, ao mesmo tempo, o meio e o índice, a ferramenta e o registro dos desenvolvimentos modernos que afetaram a nação peruana e seus povos nas primeiras décadas do século 20. As obras de Chambi captam e representam momentos de coexistência entre o passado e um presente em transição, ou seja, um tempo dividido internamente entre o que foi e o que virá. Dividido entre o ser e o devir, o presente não é mais idêntico a si mesmo: é um tempo de relativa não-identidade. E, no entanto, entre o fato e a representação, a vida continua como uma duração homogênea. O paradoxo do tempo vivido, como o próprio tempo fotográfico, é que, em muitos aspectos, é um tempo que não passa. O lugar da fotografia situa-se entre o já desaparecido e o sempre aí.
Martín Chambi
Camponesa de
Q'eromarca com criança, Cusco, 1934
Um dos elementos notáveis da fotografia de Chambi, podemos afirmar, é de fato o poder de amalgamar em um mesmo olhar, uma mesma visão e perspectiva, o moderno e o “ancestral”, a tecnologia e a “alma” – isto é, a fotografia, a “imagem-máquina”, e o espírito ou a “aura” de um povo, de um lugar e uma cultura. Uma cultura, isto é, uma forma específica de vida, uma forma única de humanidade visibilizada pelo fotógrafo. A 'aura', isto é, uma emanação de luz que emoldura um padrão formal único, uma configuração momentânea e original, ao mesmo tempo fugaz, instantânea e atemporal.
Machu-Pichu, 1925
O fotógrafo Chambi
é ele próprio portador da modernidade, de uma nova visão para e da
sua cultura. O fotógrafo é como um intruso ou invasor em sua
própria terra. E, no entanto, a mirada, a visão ou o olhar em suas
obras é recíproco, uma espécie de diálogo entre o artista e seus
modelos, um comércio de lugares entre o observador e o observado.
Neste caso, o fotógrafo é simultaneamente um observador externo e
interno. A estética do gênero e do pitoresco na fotografia de
Martin Chambi torna-se um meio de inversão – o olhar “estrangeiro”
pode servir como ferramenta de autorreflexão. Os indivíduos nas
fotos de Chambi parecem olhar para o fotógrafo com um olhar que se
assemelha, poderíamos dizer, ao olhar ou visão “mecânica” da
câmera: ao mesmo tempo intenso, focado e "distraído",
indiferente ou suspenso.
O fotógrafo indígena não se limita a "desconstruir" a fotografia, o romantismo e os gêneros: ele os usa para seus próprios fins. A sua perspectiva é, em aspectos essenciais, a da lógica implacável do instrumento ou meio fotográfico como tal. A fotografia pode, de fato, registrar o tempo e a cultura com bastante objetividade, porque é em si mesma um empreendimento coletivo, um meio coletivo que implica em cada tomada uma multiplicidade de pontos de vista, incluindo o do fotógrafo, seus sujeitos e espectadores. O olhar múltiplo da fotografia pode expressar as infinitas formas e modulações da experiência humana – todas únicas e ao mesmo tempo equivalentes, isto é, eminentemente traduzíveis na imagem. O próprio tempo traduz suas múltiplas dimensões nas formas da fotografia.
Martín Chambi
Autorretrato com motocicleta, Cuzco, 1934
A obra de Chambi é uma grande coleção de cartões postais que documentam o povo e a paisagem do Peru. Neste vasto acervo, o fotógrafo transita sem esforço da exibição pública, do trabalho comercial para visões privadas. No cartão-postal como forma, a imagem é um ponto mediador entre o olhar do outro e a visão como traço. memória, recordação subjetiva A imagem fotográfica revela a visão humana como uma relação de troca entre dois ausentes. Entrega-se a um terceiro ausente: o cartão-postal dirige-se ao futuro.
………….
O presente texto é
uma tradução/revisão/ adaptação do original publicado em meu
livro
Heterocronia and Vanishing Viewpoints, art chronicles and
essays, Metasenta Publications, Melbourne, Austrália, 2012.
A edição em papel pode ser vista aqui:
http://www.langford120.com.au/metasenta-publications.html
A versão PDF está disponível em acesso livre aqui:
https://mguimaraeslima-art.blogspot.com/2019/10/marcelo-guimaraes-lima-heterochronia.html
https://aterraeredonda.com.br/martin-chambi-fotografo-nativo/
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