Filosofia em Imagens
Marcelo Guimarães Lima
Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 21/06/1998
Enlouquecer o Subjétil - Jacques Derrida,
Tradução de Geraldo Gerson de Souza.
Ilustrações de Lena Bergstein.
Ateliê Editorial / Ed. da Unesp, 146págs.
Antonin Artaud, Autorretrato, 1946
O texto de Jacques Derrida “Enlouquecer o Subjétil” foi originalmente escrito para ser publicado em tradução alemã no livro de Paule Thévenin e Jacques Derrida, “Antonin Artaud - Zeichnungen und Portraits”, editado em Munique por Schirmer-Mosel em 1986. No mesmo ano, o livro foi publicado em francês pela editora Gallimard. “Forcener le Subjectile”, no título original, é uma meditação a partir da obra gráfica do escritor, poeta, ator, diretor, autor dramático e teórico do teatro, Antonin Artaud.
A presente edição brasileira do texto de Jacques Derrida, com tradução de Geraldo Gerson de Souza, é um projeto da artista gráfica e pintora Lena Bergstein, que desde 1989 desenvolve trabalhos a partir de uma “leitura plástica” da obra do filósofo. O texto em questão foi sugerido pelo próprio Derrida para o projeto da artista de realizar um livro, uma obra gráfica, baseado em seus escritos.
Curioso projeto que une um texto sobre a obra gráfica de Artaud a um conjunto de desenhos e pinturas (e o trabalho de concepção e diagramação do volume) da artista brasileira, numa espécie de deslocamento do “tema” ou “objeto visível” do discurso do filósofo francês, que substitui a plasticidade “convulsiva”, literalmente visceral, de Artaud, por uma certa elegância estudada das colagens, pinturas e grafismos de Bergstein.
A meditação de Derrida tem seu “ponto de partida” nos desenhos de Artaud, em que se fundem (e se confundem), o ato gráfico, a escuta (do outro) e a escrita como espacialização do vivido, sob o signo de uma violência que, para o inventor do Teatro da Crueldade, se faz “necessária” em toda criação artística, e talvez mesmo contra a “criação artística” (para além dela), para resgatar a dimensão da paixão, o pathos, na existência humana.
Os trabalhos de Lena Bergstein, por sua vez, recortam o texto da teoria e tentam localizar no espaço do livro o percurso de uma certa visualidade; daí, talvez, seu aspecto mais problemático. O interesse e a dificuldade que o projeto da artista apresenta se deve à tarefa dupla de, por um lado, submeter-se às exigências próprias da escrita e da comunicação tipográfica e, por outro, fazer de um livro o suporte imaginário da pintura e do desenho. Ao lado do texto, da ideia, a imagem é “paradoxo”.
Ausentes destas imagens, entretanto, a tensão, o esforço da ruptura, que são, também, o esforço do pensar. É nesse esforço de ruptura que repousa, em última anáfise, o que de produtivo pode haver no que se convencionou chamar (e o paradoxo aqui salta à vista) “método desconstrutivo”.
A análise de Derrida se inicia por uma observação de Artaud numa carta a A. Rolland de Renéville em 1932: “Artaud, um desenho ruim —que isso que se chama o subjétil me traiu”. Para Derrida, o aparente julgamento estético, “desenho ruim”, deve ser entendido, no contexto da obra e da vida do poeta e ator francês, como um exemplo da afirmação da transgressão enquanto “modo de ser”. Por sua vez, ao que Artaud se refere como “traição” do subjétil é, segundo Derrida, a revelação, com todo o risco que esta comporta, do sujeito na obra. O subjétil em Artaud é a figura do outro. A palavra “subjétil” (“subjectile”), nos explica Derrida, pertence ao jargão da pintura e designa o
suporte, superfície ou matéria da pintura e da escultura. Como tal, é empregada por artistas italianos da pós-renascença, tais como Pontormo e Bronzino: “soggetto” ou “subbietto”, do latim
“sub-jectum”: o que foi lançado ou jaz sob, sujeito. Nem sujeito, nem objeto, o subjétil é na pintura, segundo Derrida, o corpo primeiro e único da obra, o que não se deixa repetir, “aquilo que se distingue da forma, do sentido e da representação”. É o que assiste ao nascimento da obra, ao mesmo tempo suporte e superfície, e o que a ela se antepõe e contrapõe.
É na resistência do subjétil que a obra pictórica de Artaud e a sua reflexão ativa têm lugar. Esta revela a cena originária de um drama, uma dramaturgia do corpo que a obra, como no Teatro da Crueldade, expõe, realiza no limite mesmo dá matéria, no limite da linguagem, da matéria da linguagem, no limite do sentido: a arte no limite do humano.
Marcelo Guimarães Lima
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